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A vida de Andra 

Me lembro de Andra desde que me entendo por gente. Na ausência da minha mãe, ela estava lá por mim e sempre esteve. Na presença da minha mãe, o amor materno se multiplicava. Elas cuidavam e protegiam. Eu amava os finais de semana que ia na casa da Andra, brincava na rua o dia todo e ela preparava meu lanche preferido. Lembro até que tentei, sem sucesso, ser dama de honra do seu casamento. Mas inesquecível mesmo foi quando descobri que ela estava grávida e me senti inquieta ao perceber que teria que dividir todo aquele amor com mais uma pessoa. Fui criada só até os 08 anos por essa mulher guerreira mas sempre estivemos presente uma na vida da outra. Há alguns anos, ela esteve na minha formatura do Ensino Médio. E este ano, eu estarei na dela. Andra me viu nascer e acompanhou todo o meu crescimento. Hoje eu a vejo renascer.

Ariadne, com 9 meses, e Andra 

Desci as escadas de sua casa. “Tem café por ai?”, falei rindo. Senti como se estivesse entrando em um lugar cheio de sentimentos e lembranças boas. Fui recebida com pão, biscoito e o tão esperado café, não tinha como o dia começar melhor. Antes de darmos início à entrevista, eu e Andra conversamos sobre nossas vidas e as novidades, já que fazia um tempo que não nos encontrávamos. Ela mora no bairro Milho Branco e eu no Centro. A mulher que me criou, sábia, me escutava e aconselhava. O pagode no fundo e o sorriso no rosto tornavam tudo mais leve. “A vida é assim, minha filha”, ela acalentava e meu coração inflava. Para cada parente que entrava em sua casa enquanto eu estava lá, Andra falava, com muito orgulho, que daria uma entrevista pra sua “filha”. Até que se sentou na cadeira da cozinha: “Então, tem que falar da minha vida, né?”. E respirou fundo. “Nossa, por onde eu começo?”.

 

Ariadne Bedim

Infância e Juventude
Christinny Garibaldi e Ariadne Bedim

A gangorra, o pique-esconde e as árvores que ela subia para pegar frutas. Aos 5 anos, ela começou a se entender por gente e logo se deparou com uma ausência: “na minha casa não tinha um homem, uma referência de um pai”. Era a falta daquele que ia protegê-la e ajudar no sustento da casa. Seu pai morreu quando ela tinha 1 ano e o irmão 1 mês. A partir daí, Dona Eunice, mãe de Andra, teve que trabalhar muito, a ponto de não ter tempo de estar com os filhos, justamente para garantir a criação deles.

Nas palavras de Andra, “o anjo que a criou” foi a prima Alaíde Guedes. Ela, a mãe, a prima e o irmão moravam juntos numa casa maltratada pelas chuvas, pela pouca proteção das telhas coloniais e pelas frequentes infestações de ratos. “O banheiro era muito ruim, tinha que ir lá fora. Era sala, cozinha e quarto”, lembra. No colégio, seus calçados eram motivo de risos. Ela usava sandálias de plástico da Melissa, que diferentemente de hoje em dia, era uma marca popular. Mas Andra não se importava com a implicância dos colegas pois pelo menos estava calçando algo. 

Eu tive uma infância boa, apesar de economicamente muito difícil.

A juventude foi marcada pelas festas e a vontade imensa de ter um namorado. Realizou o sonho de um namoro e logo veio o casamento, mas faltava dinheiro para o enxoval. Aos 24 anos Andra não tinha um emprego. Surgiu a oportunidade de trabalhar na casa de Acácia, uma professora que estava grávida e vivia junto do marido e da primeira filha de 04 anos. Andra não sabia fazer qualquer serviço doméstico, mesmo assim afirmou prontamente que poderia trabalhar naquela casa, e Acácia acreditou. A partir dessa mentirinha pra conquistar um emprego, surgiu uma confiança de irmãs.

Trabalho e Casamento

A ideia era trabalhar até casar e depois ser sustentada pelo marido, mas as coisas não saíram como planejadas. Enquanto Andra trabalhava como doméstica, sua mãe insistia para que ela terminasse os estudos. “Você tem que tirar o Ensino Médio porque casa de família não traz futuro pra ninguém”. Andra seguiu o conselho e terminou o terceiro ano. Depois disso, a patroa se ofereceu para pagar um curso de informática, mas “a preguiça falou mais alto”.

Depois de alguns meses, Ariadne, segunda filha de Acácia, nasceu. A doméstica ajudou a cuidar da menina como uma mãe. Além do carinho pela bebê, Andra e a patroa também criaram um grande vínculo. Os conselhos e os exemplos de Acácia fizeram com que Andra a considerasse uma irmã. “Nessa casa que eu fui doméstica, Deus talvez tenha me dado uma família que eu não prestei atenção que eu tinha.” Neste momento da entrevista, os olhos de Andra vagam ao longe como se recordassem algo bom. Como se aquilo fosse um amor que se manifestou por meio de lágrimas.

Raíssa, filha mais velha de Acácia, Andra e Ariadne, filha mais nova de Acácia 

Andra se casou aos 29 anos, mas já conhecia o namorado Ivan desde os 20. Ela já sabia que ele bebia exageradamente, mas acreditava que podia mudá-lo. Quando achou que tudo ia dar certo, se deparou com um marido ignorante e agressivo que lhe fazia infeliz. Um casamento que a sufocava. Mais uma frustração na vida. Diante tanta decepção, ela resolveu se separar.

 

Junto da decisão, veio a vontade de emagrecer. Andra se incomodava com o peso desde a adolescência, afinal, naquela época já sofria discriminação por ser gorda. Ela resolveu frequentar academia, tomou remédio e perdeu 16 quilos. “Pensei: agora vai!”, conta. O momento de mudar o corpo seria também o da separação.

 

Para comemorar um reveillon, ela foi para uma festa na casa de uma vizinha e ”bebeu todas” por lá. Ivan, que naquele dia estava sóbrio, foi procurá-la. Andra chegou em casa bêbada e logo dormiu. No outro dia, acordou ao meio-dia completamente nua. “Acho que ele aproveitou essa situação”.

 

Dois meses se passaram. A menstruação de Andra estava atrasada e o cansaço era frequente. “Vai ver você tá é grávida”, suspeitava Acácia. Por um momento, Andra não acreditou na possibilidade. “Não é possível que agora que eu quero separar, engravidei.” Engano dela. “E não é que eu tinha engravidado? Tava de dois meses e nem sabia.”

 

Pelo bebê, Andra arrastou aquele casamento por mais um tempo. Quando Pedro, seu filho, tinha um ano e meio, uma briga marcante mudou o rumo daquele relacionamento. Ivan, que já havia agredido Andra, ameaçou bater nela mais uma vez, mas naquele dia, ela estava decidida a enfrentá-lo. “É hoje que eu vou jogar essa casa pro alto”. O momento de revidar a humilhação que tinha passado durante todos aqueles anos havia chegado. “Ah, dei muito na cara dele”, “porrei ele com força”. A partir daí, o ex-marido estava proibido de voltar pra casa.

 

Mesmo depois de tudo que aconteceu, Ivan não deixou de causar transtornos. Ao ir embora, ele levou a maioria dos móveis e todos os mantimentos que tinha comprado pra família. “Fiquei só com os armários de cozinha, a televisão, o guarda-roupa e os móveis do Pedro. Ele me deixou sem nada, mesmo sabendo que eu estava com um filho pequeno”. Péssimo momento para repor os objetos perdidos. No emprego na casa de Acácia, seu salário tinha sido reduzido. Andra passou a trabalhar somente três dias por semana porque a patroa não podia mais pagar o valor semanal, afinal, também tinha se separado e estava passando por dificuldades com as filhas.

O Filho

Na foto, Pedro Paulo com meses de vida

Para trabalhar, Andra pagava alguns conhecidos para tomar conta de Pedro Paulo. As creches não eram adaptadas para recebê-lo. Ele tinha refluxo e a mãe sabia disso, apesar de os  médicos falarem que era só um golfo. “Tem diferença de um golfo para um refluxo. O que esse menino fazia era igual uma mangueira”, ela lembra. Na fase pós separação, Andra contou com a ajuda de familiares e conhecidos. Na justiça, ela fez com que Ivan pagasse a pensão do filho com o valor descontado em folha. Conseguiu comprar uma cama e uma geladeira.  “Eu venci”. Ouça a música que marcou a gravidez de Andra. 

Mas logo veio a necessidade de arrumar outro emprego. A doméstica foi para a casa de outras famílias. Depois, trabalhou em uma creche da AMAC (Associação Municipal de Apoio Comunitário), com um serviço que gostava e onde ficou por 5 meses para substituir uma funcionária. Ao sair, foi atuar novamente como doméstica, agora numa casa em que sofreu na convivência com os patrões. “Eu me sentia trabalhando na casa da Xica da Silva. Um preto desfazendo do outro”.

No colégio de Pedro, as professoras começaram a solicitar a presença de Andra para relatar os problemas de aprendizado do menino. Ela logo pensou que a causa era a separação, a falta de um pai. Depois de dois anos separada, reatou o casamento com Ivan. “Foi um inferno”, assim ela descreve o período em que esteve com ele. Separou-se novamente. Os problemas de Pedro não se resolviam. Andra tirou o filho da escola do bairro e o matriculou no Instituto Estadual de Educação, conhecido como Escola Normal, no Centro. As dificuldades de aprendizagem continuaram. No Instituto Médico Psico Pedagógico (IMEPP), Pedro foi diagnosticado: ele tem autismo, um autismo leve. Era a Síndrome de Asperger. Assim Andra se questionava frente a mais uma batalha que teria que enfrentar. Depois de muita luta, Andra conseguiu uma professora de apoio para Pedro na escola.

Mas eu vi ele nascer, ele estava perfeito, como que o meu filho, o meu, era diferente, era especial? Como aceitar isso?

Andra e o filho Pedro Paulo

Mas a vida reserva surpresas. A Escola Normal não era apenas o local onde seu filho estudava, ou onde ela lutava para que o menino tivesse acesso aos direitos de uma criança portadora de deficiência. Era também o cenário de seus sonhos. Era lá que ela queria retomar o antigo desejo de fazer magistério para se tornar professora. E assim fez, apesar de todas as dificuldades. Assista ao vídeo e conheça a história de Andra no magistério.

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